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segunda-feira, 11 de abril de 2011

I S C A

Já sabia, há muito tempo, que uma prosa puxa outra... um sonho puxa outro... e a história do criatório dos Sampaios tinha deixado o Cilino encabulado. Notara isto quando ele veio, tentando empurrar um gancho cheio de cavacos: “compra, siô, essas pirambeba dá uma silada batuta. E ieu tô pricisano dimais duns cobre - comprá uns quilim de toicim, uma banha de galinha pra gripe dos minino qui tá cuma febre ó!”

Enquanto duvidava se comprava ou não os cavacos, o Cilino foi se acocorando no passeio. Tirando palha, facão e fumo pra fazer um pito. Olhando lá pra esquina, como quem fala indiretamente em voz baixa, ou pensa em voz alta, foi resmungando que esse “Tunim Sampai” é um danado! “Nós tudo” pensando que ele ia ser padre quando foi pra Luz, no Seminário. “Dipois” ele sumiu pra Beagá. E acabou de volta. Sempre com o violão e as cantorias. Pra casar, ter as filhas e o filho. E juntar os irmãos pra realizar a criação de peixes. Todo mundo pensando que era bobagem de moço novo. Esse povo bobo não tinha aprendido a parar de reclamar do desequilíbrio ecológico, social, humano (sei lá) dessa represa repressora. Nem usar ela, lá, de fonte de trabalho e dignidade. Onde já se tinha visto isso? Criar peixe feito capado, galinha ou boi de corte! Peixe, a gente pegava lá no “corgo” e pronto. Mas agora é diferente. As conjunturas e as circunstâncias já são favoráveis. Ninguém mais acha absurdo. A gente já sabe que água parada "num" tem força, "mais" tem peso.

Ele é que “tá” certo! Já que a terra é dos homens, não é de Deus nem do Estado; já que o mar não virou sertão, mas o sertão, aqui pra nós, já virou mar, vamos nós ser fazendeiros das águas e boiadeiro dos peixes, uai! Bem que ele podia ensinar um dos vaqueiros de peixe dele a mexer com peixe-cachorro! Continuou ele, dizendo que “esturdia” viu na reportagem do Globo Repórter, mostrando a descoberta do peixe-cor-de-prata na Amazônia, pra incentivar o turismo com a pescaria esportiva. Achou o peixe muito parecido com o peixe-cachorro - bem maior, é claro, mas muito parecido. Pensou: ninguém come aquele bosta de peixe, mas, pra quem gosta de pescar, até que ele é valente “memo”, no anzol. Até que dá pra divertir. Ainda mais com esses políticos falando tanto em explorar o turismo ecológico aqui “ni” Morada Nova...

Tinha visto ambição no olhar do jeca que se urbanizava. Fez lembrar a vó dizendo: Todo mundo tem que ter “invição” na vida. Flagrante raro. O Toninho voltou pra roça sem deixar a cidade. O Cilino estaria querendo vir para a cidade? Será que queria deixar a roça? Iria conseguir? E a roça, será que ia conseguir deixar ele? Parecia o fim de um ciclo – o Brasil rural, o Brasil jeca. O coitado do matuto, ali, cheio de verdades-sonhos e quase um tatu de tão acanhado. Olhando pro chão e querendo sumir no chão. Falando pra dentro de tanto medo de estar dando uma má nota. Mas nem tudo era pândega no capiau. Ele tinha lá suas sabedorias. Suas “sabenças”. Tinha chegado a pensar: ele estará querendo ser sócio do Toninho e seus irmãos? Concorrente?. “Tarará”? (De novo a lembrança da vó).

Vozinha do capiau se esvaziando dos ouvidos. Sua imagem e uma idéia enchendo as emoções. Amolecendo o coração. Dando preguiça de resistir em comprar aqueles cavacos. Os dedos defeituosos dos pés mais ou menos deitados nas alpercatas de couro. A calça de linha de algodão cru, tecida em tear e costurada a mão, ficara em casa. Tomando o seu lugar, a calça faroeste, com um azul ainda engomado (cheirando fábrica, diria o amigo Pica-pau). Porque era domingo, e domingo é dia de ver Deus e se aparecer “pra frente”, moderno. As pernas dobradas: de cócoras. Recavém arriado em riba do macuco dos calcanhares. Cacunda escorando o muro. Vermelhidão do sol nos braços amparados pelos joelhos. Mãos calejadas, trêmulas, picando o fumo. O tecido sintético e amarelo-ouro da camisa tipo Volta Ao Mundo. A barba rala espetada no queixo. O amarelão do rosto. A palha de pito atravessada atrás da orelha. O cabelo louro-avermelhado e liso “que boi lambeu”, sentindo falta do chapéu – esquecido em casa, por querer.

E a idéia? Tinha garrado a imaginar. O peixe-cachorro que nunca prestou nem pra isca, sempre jogado fora, sendo comprado caro, ainda vivo, e solto nos tanques de procria. Especialistas manipulando a genética dos alevinos. Produção de peixe-cachorrão. Peixe-cachorro-fila. Mais voraz e mais valente ainda. “Feróis”. Para o esporte. O Cilino gostando de fisgar aquele peixe. “Luitano pra tirá ele d’água”. Querendo ser o campeão da pesca. Jogou a linhada no meio do melhor tanque e veio trazendo. Sentiu um puxão. Outro, mais forte. Outro, mais longo. Viu a linha pesar e correr. Deu uma chachada... “Fisgou”, não; “chachou”. Chachar é fazer assim, ó! Dar o golpe na linha. O fisgar acontece é lá, na boca do peixe. Pegou um cachorrão. O maior do pesqueiro. Profissional. De campeonato mesmo. O bicho correu, puxou, saltou, relampeou o sol nas escamas quando subiu fora d'água, no ar. Enrolou a linha no indicador pra sentir firmeza. Num arranco do cão, a linha podia cortar–lhe o dedo fora. Ele, de certo, ia preferir ficar aleijado, mas não parava a pescada. Que implante que nada! Imagina! Além de perder o dedo, inda ia perder o peixe... e o título! Era capaz de ele, se a isca tinha acabado, acabar iscando o cotoco de dedo no anzol. Pra pegar o peixe-cachorro de novo. Que tinha escapulido quando bambeou a linha na dor do dedo.


Í, só conseguiu pegar umas piranhinhas brancas com aquela isca.

De novo a vozinha tabaré. Nenhum soco no ouvido não. Foi mais uma brisa. Puxando o ombro da camisa. Com o seu “cumé? Vai querê as pirambeba ô num vai, sô?”, pegando a mão. Guiando-a para encher o bolso. Tirar de lá umas cédulas pra pagar os cavacos, que a outra mão já assungava do chão do passeio. As notas foram ponhadas por riba do fumo picado no meio da mão dele. E tinha visto. Direitim. A mão dele espalmada, com o cotoco do indicador, ainda com pó de café e um capucho de algodão chamuscado, pra estancar o sangue.
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Um comentário:

Harley Moura disse...

Amigo Donizete,

No mês que vem estarei rumando a uma pescaria. Além de peixes, espero trazer uma boa história, ou estória, ou pelo menos um belo conto com os que você brilhantemente publica por aqui.