Este é o meu poema que o Tunico Moura sabia de cor. Acho-o muito longo para as mídias eletrônicas (e para ser decorado). Mesmo assim, decidi postá-lo, já que temos falado muito em Linguagem “Caipira”. Seria também uma homenagem ao Tunico e, já que estamos em maio, "mês das mães", a todas as mães sertanejas.
Catulo da Paixão Cearense, Patativa do Assaré e tantos outros já registraram muito bem o jeito de falar e de pensar do homem do campo. João Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Romério Rômulo já atingiram a perfeição no uso criativo desta linguagem. Então fiz este poema (um metapoema, na verdade), fazendo uma passagem da linguagem sertaneja para a Linguagem Padrão. Veja o efeito disto.
CUBERTA DE MULAMBO
sabe tudo apruveitá.
Até memo os resto de ropa,
os carção qui furô nas popa,
ela gosta de guardá.
Dispois, cuma tisora,
tira as gola, as fralda e as barra,
qui é as parte mais dura,
muito cheia de custura,
qui num rasga nem na marra.
Do saco de retaio faiz a tuia
e, dispois, nas forga do trabaio,
ela num discansa nem imbruia:
vai rasgano os retaio.
Pede pra num arrepará
e, inquanto vai prusiano,
rasga o verbo e rasga os pano.
E quando o saco de retaio já tá bem cheio,
ela junta cuns nuvelo de linha
de argudão ganga, ô branco, ô vermeio,
ô de quarqué cô, de tinta de latinha,
ô tingido cum anil, qui mandô rancá
e leva tudo pra tecedera qui tem um tiá.
E a tecedera tgece fio pur fio,
pra num dexá ninhum bambo.
Trabaia, trabaia a fio
até tecê a cuberta de mulambo.
É uma buniteza qui num tem tamãe:
os mulambo qui num prestava mais
vai sê um agrado pra cumade ô pra mãe,
agora na forma de cuberta colorida.
Ô intão vai isquentá, no frio do gerais,
os fio do sertanejo, pur toda vida.
Se a muiá dá a cuberta pra arguém lá da roça,
aí ela vai imbuiá arguém, numa paioça,
qui é pra isso qui serve uma cuberta:
Cubri arguém quando o frio aperta.
Mas, se pur um acaso ela é dada de agrado
pra uma muié rica que veio da cidade passiá,
ah, intão ispia só qui pecado,
ela fica na parede, ô no chão pros ôto pisá.
Cum a maiuria fazeno pocaso,
dizeno qui a cuberta é sinale de atraso.
Ah, mas vorta e meia argém recorda cum prazê
de tudo qui acunteceu pra fazê uma cuberta.
Rasgá retaio, fiá argudão, levá pra tecê.
Até os pedaço da camisa qui comprô pra festa
tá ali, ajudano no feitio do agasaio.
Agente 'té isquece o tanto qui deu trabaio.
De veiz im quando a gente vê falá
de arguém qui foi pra cidade istudá,
qui já até tirô o quarto ano,
e, memo assim, segue istudano
e se aprepara pra casá
cum rapaiz qui tamém já tá formano.
Pois é essa moça, formada e bela,
qui toda noite pede pra Dona Rosa,
a dona da pensão onde ela posa,
pra num dexá de pô na cama dela
uma cuberta de mulambo, bem grossa,
iguale as qui ela usava na roça,
pois só consegue durmi cum ela:
nem siqué cuchila, minha Nossa,
sem os caroço de mulambo nas custela.
E eu
filho do meu sertão
vivi suas belezas penúrias intrigas
ouvindo suas histórias com atenção
ajudando minha mãe
a rasgar molambos
fui me envolvendo com outras vidas
engolido pelo sistema.
Me deslumbrei com outros lemas outras lidas
frequentei escolas me dessestruturei me decepcionei sofri
me reencontrei fui feliz relutei resisti -
“foi peta”: acabei virando poeta.
Hoje
nesta outra sofrida função
de juntar versos rijos aos bambos
vejo
que na minha transformação
fiquei feito um tecelão
de cobertas de molambos.
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