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sexta-feira, 3 de junho de 2011

UM MORADENSE NO CÉU

Toda vez que alguém começava a se queixar, a dizer que quebrou e continuava pobre por culpa da represa, fazia questão de contar. Dizia que era um moradanovense da geração da inundação e que tinha morrido há pouco. Tinha sido um lutador incansável pelo município. E, quando a represa chegou, tinha ficado revoltado. Tentado convencer todo mundo a não ir embora, e ficar, e protestar, e lutar. Não aceitara a indenização amigável. Tinha ajudado a mobilizar conterrâneos para entrarem em demanda. Tinha até dado uns tirinhos naquele safado que recolheu donativos para os flagelados da inundação e até hoje não entregou nada pra ninguém (uns tirinhos virtuais, mas tinha dado). Quisera se suicidar, mas não deu pra aguentar a dor das facadas no corpo ir além dum punhado de esfolões que ficaram merejando sangue por uma meia hora no pescoço, nos peitos e na barriga.

Até que enfim, tinha conseguido morrer. De morte natural (veíce mesmo). E tinha ído pro céu.

E continuava contando que ´cê pensou que ia ser fácil? Não, primeiro fora convocado pra uma audiência com um santo de vestido branco, cabelão comprido e muito barbudo, que todo mundo dizia ser o segundo homem mais forte de lá do céu. E que na estação de trabalho do santo tinha um computador dos mais novos, que era pra ir escrevendo e gravando tudo que os dois iam proseando. E ia ser operado por um anjo muito velho, que, em vez de asas, tinha nas costas era um par de bóias salva-vidas.

- Então, meu filho, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós vamos gravar todo o seu depoimento, nossa Central vai processar tudo e nos dizer se o senhor vai ficar aqui mesmo, ou se vai para outro Departamento. Quem faz as perguntas somos nós. O senhor pode apenas responder. Mas, posso te adiantar que, entre os valores que pesarão a seu favor, estão a tolerância, a compreensão, o heroísmo de se sacrificar pelo próximo e pela coletividade, a capacidade de superação e a virtude salvadora, que é o perdão. Irmão escrivão, comece a digitar e a gravar. Irmão depoente, conte para nós o que te aflige na sua história.

- Bão, meu Santo, eu fui lavrador lá ni Morada Nova de Minas. Tocava minhas roças nas vazantes do rio Borrachudo, do Indaiá, do Sucruiú e até do São Francisco. Era bão dimais pra coiê os mantimentos, mas, volta e meia, vinha umas cabeçadas de inchente e estragava tudo. Dava um prejuizão danado, mas eu replantava.

Nessa hora, falava que o anjo escrivão tinha soltado um palpite:

- Você não viu nada!...

E que o santo especula, vendo que o moradense tinha se irritado, e achando que aquele trem não ia prestar, interpelou:

- Lembre-se: tolerância, compreensão... Continua, irmão, continua...

- Tá bem. Aí então, eu comecei a largar as terra de cultura e aprender a prantar nos ispigão mais alto. A inchente, memo quando vinha alta, não atingia as prantação. E eu já tava conseguindo colher até muito naquelas terras pió. Mas, um dia, num é qui o rio São Francisco deu de começar a encher dibaixo pra riba? E aquilo foi subino, foi passano pros rios, chegano até nos corgos, tampano tudo que era ispigão mais alto, até quase nivelar com as chapadas de cerrado. Aí, foi que eu quebrei de vez. De vez, não, de maduro...

Então, dizia que o escrivão tinha tornado a falar:

- Você ainda não viu nada!...

E que, então, o santo lá das interrogações, vendo que o moradense já tava espumando de raiva, tinha olhado pro escrivão com a cara fechada e falado:

- Calma, irmão... Heroísmo, superação... Continua, continua.

- Pois é, tinha ficado quebrado, sem terra, sem indenização e até sem a energia elétrica da Companhia que eu tinha ajudado a fundar e que tamém foi inundada. Tudo pro Brasil inchê o rabo dos ôtos de eletricidade pra eles terem mais conforto, mais recurso e até enricar em riba da minha pobreza. De vez enquando, nos anos que chovia pouco e a represa baixava muito, eu não aguentava a saudade e plantava umas roças nas vazantes que tinham descoberto. Mas, na hora que o milho embonecava... começava a granar... o arroz enbarrigava... começava a dar cacho... garrava a chover, a represa subia de novo e tapava tudo traveiz.

Nessa hora, parava, suspirava, e falava que num é que o escrivão falou de novo?

- Isso não é nada mesmo!...

E que até o santo perguntador tinha ficado meu furioso, mas procurado resolver o caso:

- Irmão, olha a virtude salvadora, a do perdão... Continua contando.

Aí, contava que tinha engolido seco e retomado a conversa. Até falando meio resmungado, entre os dentes:

- Foi nesse tempo dessa tristura que eu quase fiz aquela doideira. Do pecado que ninguém perdoa de tentar contra a minha própria vida. Mas escapei, arregacei as mangas e parti, de novo, pra luta. Comecei vendendo umas lenhas. Passei a fazer carvão. Raspava o cerrado, aproveitava o cerrado raspado, semeava umas gramas, fazia uns pastos... Comecei a aprumar de novo. Deu até pra comprar uma casa lá na rua de baixo. Mode ficar perto do açude. Da pescaria, porque já ia ficando véio, querendo sossego. Mas não é que, tendo raspado o cerrado todo, o sistema de chuva foi dimudando, dimudando, até que, vira e mexe, dá umas trombas d’água e o açude garra a tomar água, até derramar? Entra no meu quintal e até dentro da minha casa, estragando tudo!...

A essa altura, parava de novo e, remedando quem tá furioso, dizia que o diabo do anjo palpiteiro tinha soltado mais essa:

- Isso não é nada perto do que já vi!...

E terminava dizendo que o santo das perguntas, tinha metido a bengala no chão, dado um trovão e um relâmpago, e ralhado feio:

- Calaboca, Noé!...

(Lucas Donizete da Silva – Contagem, 26/JAN/2010)

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